Quinze anos após sua aprovação no Congresso Nacional o que se percebe é que as desigualdades presentes no Brasil urbano continuam as mesmas da época em que o Estatuto da Cidade era bravamente discutido e enormemente desejado por toda uma geração de arquitetos e urbanistas. Sua aprovação em 2001 representou um sopro de esperança para aqueles que sonhavam com um Brasil urbano menos desigual e excludente. Diretrizes e instrumentos urbanísticos avançados foram discutidos durante mais de uma década no Congresso Nacional até sua aprovação pela Lei Federal 10.257/2001. Entretanto, uma série de situações levou o Estatuto a falhar na sua luta pela construção de um espaço urbano menos desigual no país.
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende apresentar de forma sucinta algumas das possíveis causas da fragilidade do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/2001, e das legislações urbanísticas dele decorrentes, no enfrentamento das desigualdades existentes no espaço urbano brasileiro.
Aprovado em 2001, o Estatuto da Cidade representou uma boa nova para a política urbana nacional. Desde sua elaboração ele foi compreendido como uma possibilidade para a modificação positiva da realidade das cidades brasileiras [1]. Fruto do trabalho do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, o Estatuto tornou legal uma série de instrumentos urbanísticos e, diretrizes de desenvolvimento urbano capazes de modificar a realidade urbana do país. Isso através da compreensão de que as cidades se formam a partir de interesses diversos, muitas vezes conflitantes, mas mesmo assim passíveis de serem pactuados.
A sua elaboração e aprovação no Congresso Nacional, sendo assim, aparecem como uma resposta às distorções do Brasil urbano. Fruto de uma lógica excludente de planejamento e produção, as cidades brasileiras do fim do século passado materializavam em seu espaço uma série de desigualdades encontradas em nossa sociedade [2]. As ocupações espontâneas esparramadas pelo território nacional em áreas ambientalmente inadequadas; ocupadas de forma precária e; onde a posse é o instrumento de permanência dos seus moradores; continuam sendo os exemplos deste modelo que relegou as sobras àqueles que ajudaram a construir as cidades e sua riqueza, [3], [4] e [5].
Infelizmente, passados quase quinze anos desde sua aprovação, o que se percebe é a subutilização do Estatuto, o acirramento das desigualdades no espaço urbano brasileiro e a consolidação de um quadro contra o qual se pretendia opor.
POSSÍVEIS CAUSAS
Esta realidade decorre de muitos fatores, é verdade. O que se pretende aqui, entretanto, é argumentar que dentre eles existem aqueles relacionados às falhas da política urbana implementada nos municípios. Mais do que isso discutir os fatos geradores destas falhas.
Há que se considerar a oportunidade perdida com os novos planos diretores elaborados a reboque do Estatuto da Cidade [5]. Quantitativamente eles atenderam às expectativas, como demonstram dados do Ministério das Cidades, que indicam quase 2.000 municípios com planos diretores elaborados pós Estatuto. Do ponto de vista qualitativo, entretanto, a questão não foi resolvida, pois os novos planos não trataram de diversos assuntos fundamentais para sua operacionalização.
Estes podem ser classificados em exógenos e endógenos à legislação urbanística [5]. Abaixo seguem alguns importantes de serem observados. Todos eles, de uma forma, ou de outra, se relacionam com a realidade caótica dos municípios brasileiros.
Com relação aos fatores exógenos, primeiro cabe avaliar a incapacidade do planejamento urbano municipal de lidar com a questão regional, inclusive, a metropolitana. A legislação urbanística de um município se restringe ao seu território, não exercendo influência sobre vizinhos, que podem, de acordo com seus interesses, gerar impactos involuntários sobre a infraestrutura urbana e serviços ofertados pelo vizinho, [4].
Segundo, a primazia do valor de troca sobre o valor de uso da terra urbana. Muitos dos instrumentos do Estatuto não são utilizados nas legislações urbanísticas municipais por afrontarem o direito de propriedade, ainda entendido como absoluto no país. Esta compreensão equivocada de que o direito de propriedade se confunde com o de construir, apesar de já vencida no Estatuto da Cidade, ainda não foi tomada como verdade na prática, o que inviabiliza o uso de instrumentos urbanísticos previstos no próprio Estatuto, [4] e [5].
Terceiro as tensões existentes entre grupos políticos antagônicos que se sucedem no poder local e as disputas entre os poderes executivo e legislativo, movimentos sociais e empresariado. A instabilidade política local gera desconfianças capazes de paralisar, ou mesmo reverter planos de médio e longo prazo. Isto tem dificultado a aplicação de diretrizes previstas nas legislações urbanísticas municipais.
Quarto a falta de articulação de grupos comunitários em contraposição à pressão exercida de forma orquestrada pelos setores produtivos por novos espaços voltados para suas atividades. A necessidade de viabilizar novas receitas municipais capazes de fazer com que planos sejam realizados, muitas vezes contradiz o previsto no próprio plano. Assim a legislação urbanística fica fragilizada frente aos interesses econômicos em jogo. Por outro lado, os grupos comunitários, pouco articulados e sem participação efetiva na gestão do plano, sofrem com as alterações ditadas pelos interesses econômicos em jogo.
Por fim, e de forma complementar ao item anterior, a gestão da aplicação da legislação urbanística. Esta, conforme previsto no Estatuto, deveria ser participativa e, portanto democrática. O que se observa, entretanto, são planos elaborados, mas esquecidos por motivos diversos, dentre os quais a fragilidade dos canais de participação no processo de operacionalização dos mesmos.
Finalizada a lista de fatores externos aos planos cabe fazer a análise das questões endógenas à legislação. Importante considerar primeiramente a complexidade das legislações urbanísticas aplicadas nos municípios. Normalmente, além de complexas elas são modificadas e emendadas logo após sua aprovação. Como se isso não bastasse, elas são regulamentadas por dispositivos legais complementares, o que, apesar de necessário, acaba criando uma sobreposição de instrumentos de difícil interpretação pelos interessados. Isto gera maior dificuldade para licenciar empreendimentos e atividades urbanas, o que acaba por incentivar as irregularidades no parcelamento, uso e ocupação do solo local [5].
Segundo, a questão da articulação da legislação urbanística, em especial dos planos diretores, com as demais políticas setoriais. Caberia aqui uma análise relacionada a cada uma delas, mas especial atenção é devida à orçamentária. O plano não tem sido compreendido como diretor dos investimentos públicos, os quais nem sempre seguem sua orientação [4]. Assim ele acaba transformado em plano discurso, que muito diz, mas pouco realiza [6]. Esta pouca atenção à questão orçamentária faz o município não somente negligenciar o plano e sua relação com os investimentos, mas também, na outra ponta, desconsiderar receitas advindas de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. Alguns, inclusive, acabam sendo previstos nos planos diretores municipais, mas não são aplicados, como exemplo o IPTU Progressivo no Tempo e a outorga onerosa do direito de construir e alteração de uso.
Por fim outro aspecto importante a ser analisado como óbice à operacionalização do plano diz respeito à adoção de parâmetros elitistas de parcelamento, uso e ocupação do solo. Estes, em sua maioria não consideram a realidade local, mas outra, idealizada e distante da cidade existente. Assim o sonho da cidade legal e ideal é transportado para a legislação urbanística. Esta, por sua vez, vai se afastando do praticado pelos cidadãos e definindo duas cidades, ou uma partida. Nesta, a legalidade atende aos interesses de uma elite, que vê o preço das suas propriedades elevado, e exclui a maioria do acesso aos serviços e infraestrutura urbanos.
Além dos aspectos acima, aqui considerados como endógenos e exógenos à legislação urbanística, cabe também analisar os que seguem. Dentre eles o de que o centro do debate relativo à atual realidade urbana brasileira estaria nos projetos de reforma urbana em disputa no país [1]. Seriam três momentos distintos desde os anos 1980. Primeiro as forças populares tentando pautar o processo de redemocratização do país, o que acabou levando à aprovação de uma nova Constituição Federal e do próprio Estatuto da Cidade. Depois as forças neoliberais, marcadamente atuantes no país durante os anos 1990, tentando inserir a economia nacional na nova lógica global de produção econômica e consequentemente do espaço urbano [7]. E por fim, as mudanças percebidas no cenário político e econômico do país no início dos anos 2000, que levaram ao acirramento da disputa entre os interesses do movimento pela reforma urbana e os do mercado imobiliário e da construção civil.
Por fim há que se considerar que o atual estágio de organização, ou desorganização, das cidades brasileiras seria a causa das recentes demonstrações públicas de descontentamento ocorridas em 2013. Observa-se que os avanços econômicos, legais e institucionais verificados nos últimos anos no país, em especial com a aprovação do Estatuto da Cidade, não foram suficientes para amenizar as desigualdades ainda presentes no espaço urbano brasileiro [8]. Este raciocínio permite dizer que as cidades brasileiras foram produzidas para gerar lucros para as pessoas jurídicas e não para acomodar a vida das pessoas físicas, o que seria uma completa transgressão daquilo preconizado pelo Estatuto da Cidade, ou à clássica noção de direito à cidade [9].
CONCLUSÃO
O artigo apresentou um conjunto de possíveis motivos relacionados às falhas da política urbana no enfrentamento da caótica realidade das cidades brasileiras. Aqui eles foram organizados de forma a mostrar para o leitor que muitos deles guardam uma relação direta com a legislação urbanística municipal, os quais foram nominados endógenos. Outros, por não estarem relacionados diretamente ao conteúdo das leis urbanísticas, foram aqui mencionados como exógenos à legislação.
Todos estes instrumentos, conforme indicado no texto, decorrem da Lei Federal 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade. Esta, em seu conteúdo, apresenta um conjunto de diretrizes e instrumentos urbanísticos que tem sido utilizado pelos municípios brasileiros. Seu uso ocorre através da legislação urbanística local, que tem incorporado o Estatuto como norteador das políticas municipais de desenvolvimento urbano.
Assim, o que se tem percebido é que o Estatuto se apresenta como o elo entre a política nacional e as políticas locais de desenvolvimento urbano.
Infelizmente, o que ocorre é que apesar de inovador e abrangente em conteúdo e no processo que culminou com sua aprovação, ele não tem sido capaz de dar as respostas para as questões que ele se propôs ajudar a resolver. As cidades brasileiras mesmo com os avanços urbanísticos legais trazidos pelo Estatuto, não têm sido transformadas para melhor como esperado. Por trás deste parcial fracasso estariam as questões relatadas acima [2], [10], [4], [1], [8] e [5].
NOTAS
[1] ROLNIK, Raquel. Dez anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do Mundo. In: RIBEIRO, Ana Clara T.; VAZ, Lilian V.; SILVA, Maria Lais P. (Org.). Leituras da cidade. Rio de Janeiro: ANPUR; Letra Capital, 2012. P. 87-104.
[2] MARICATO, Erminia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2001. 208p.
[3] VILLAÇA, Flávio. As ilusões do plano diretor. São Paulo, 2005. 95p. Disponível em http://www.flaviovillaca.arq.br/pdf/ilusao_pd.pdf
[4] FERNANDES, Edesio. Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas questões para reflexão. In: COSTA, G.M. e MENDONÇA, J. Planejamento urbano no Brasil: trajetória e perspectivas. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2008. P. 123-135.
[5] ALMEIDA, Luiz Felype Gomes de. O Estatuto da Cidade e o cumprimento da função social da propriedade: o que ficou, para onde vai? Anais XVI Encontro Nacional da ANPUR. Belo Horizonte, maio de 2015. P. 1-17.
[6] ARANTES, O.; VAINER,C. e MARICATO, E. – A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
[7] HARVEY, D. – A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume Editora, 2006.
[8] ARANTES, Pedro Fiori. Da (anti)reforma urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades. Correio da Cidadania, 08/Nov/2013.
[9] LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
[10] MONTE-MÓR, Roberto Luis de Melo, A questão urbana e o planejamento urbano-regional no Brasil contemporâneo. In: DINIZ, C.C.; LEMOS, M.B. (Org.) Economia e Território. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. P. 429-446.
Lessandro Lessa Rodrigues é Arquiteto e Urbanista pela Escola de Arquitetura da UFMG, em 1996. Especialista em Urbanismo pela mesma universidade, em 1998 e mestre em Contemporary Urban Renaissance, em 2003, pela Liverpool Hope University College/University of Liverpool. Professor do curso de graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade de Itaúna, em Minas Gerais, desde 2003, já foi secretário municipal de planejamento de Betim/MG (2009-2012); secretário municipal de gestão regional e coordenação municipal da Pampulha (2007-2008), em Belo Horizonte e secretário municipal de urbanismo e meio ambiente de Itaúna/MG (2005-2006). É sócio-proprietário da KLR276, empresa voltada para assessoramento na área de urbanismo.